sexta-feira, 15 de outubro de 2010

"A Morte de Bunny Munro"

Há alguns tipos de livros que despertam em mim a vontade de esbofetear seus protagonistas. A sequência de besteiras (tolices) cometidas pelos personagens principais me tira a paciência. Se pensassem, se tivessem um momento apenas de lucidez evitariam desventuras e desgraças de todo tipo. Mas não. E tome infortúnios. Tenho até a impressão de que alguns autores sádicos adoram rechear suas histórias de outsiders desmiolados, inconseqüentes, só para nos ver xingando, fulos de raiva. E essa sensação sinto também lendo biografias de personagens reais, como Tim Maia (“Vale Tudo: Tim Maia” de Nelson Motta), Garrincha (“Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha” de Ruy Castro), Cássia Eller (“Apenas Uma Garotinha: A história de Cássia Eller” de Ana Claudia Landi) e Paulo Leminski (“O Bandido que Sabia Latin” de Toninho Vaz). Bem. Mas não quero dizer com isso que são ruins esses livros. Muito pelo contrário. Como é o caso do excelente A MORTE DE BUNNY MUNRO do Nick Cave que acabo de ler. Em seu segundo romance, Cave criou um outsider vendedor de cosméticos cuja esposa se suicidara. Sozinho, sem nada na cabeça, Bunny resolve levar o filho de nove anos consigo em seu automóvel Punto pela Inglaterra, enquanto oferece seus produtos a clientes das quais, de alguma forma, busca resolver sua tara, sua sede por sexo. Um drama que me fez rir, chorar e xingar, xingar em demasia.


A Morte De Bunny Munro, que está fresquinho nas livrarias (a editora Record não fez ainda algum evento de lançamento), começa com uma narrativa simples, sem rebuscamentos, sem fluxos emocionais, sem frescuras para agradar, mas na sequência final, Cave esbanja arrojo literário ao descrever os últimos momentos do personagem principal. Dizem que o primeiro romance do autor, “And the Ass Saw the Angel (1989)”, nunca lançado no Brasil (em Portugal recebeu o nome de “E o Burro Viu o Anjo”), envolvia religião e muita violência, temas comuns à obra de Cave. Durante a leitura achei parecido o “Bunny” de Cave com o “Zeca” do romance "Pornopopéia (2008)" de Reinaldo Moraes; ambos hedonistas, autodestrutivos e doces filhos das putas por natureza.
E por falar em Nick Cave, há um tempão escrevi sobre o cara quando descobri que ele morou em Sampa no início dos anos 90. O texto segue abaixo.


WIM WENDERS E APRENDENDERS [eu sempre quis escrever um texto com esse título)

Amigos, desde que me tornei assíduo na Mercearia São Pedro – boteco decano ao lado do Fórum de Pinheiros -, o Nick Cave, aquele compositor das trilhas de “Asas do Desejo” e de “Tão Longe, Tão Perto” de Wim Wenders, me olha enviesado quando vou ao banheiro. Ator, roteirista, escritor e músico, Cave está há um tempão fixado na parede da Mercearia. Não entendo o que vai manuscrito em inglês no pôster, não pelo idioma, mas pelos garranchos – talvez disformados por alcoolemia, dado a vida etílica de Cave.

Nesta quinta, pós carnaval, mesmo de tarde, o bar estava lotado. Procurei então me ajeitar à beira do balcão. “Tá difícil descolar mesa hoje”, disse o rapaz que me servia a primeira Original. Cave, de óculos escuros estava ali percebendo a muvuca da Mercearia. Não sou fã do cara, sei pouco sobre ele. Já li artigo na Falha de S.Paulo que o comparava a Lou Reed. - qualquer dia desses consultarei o Step (Marcelo Steponkevicius), meu amigo da Vila Ema especialista em pop/rock de todos os cantos.

Sei que Cave é australiano e que nos anos 80 chegou ao reconhecimento do público e da crítica com a banda Nick Cave and The Bad Seeds, com letras violentas, que beiravam o sadismo. É dito que ele lê a Bíblia e consome altas doses de álcool antes de escrever suas músicas. Agora, o mais interessante sobre Cave descobri com o balconista da Mercearia. Acreditem: o músico chegou a morar ali pertinho, na Vila Madá, nos anos 90, onde conheceu Viviane Carneiro com que teve seu primeiro filho, Luke. Segundo o rapaz, Cave, que freqüentava a Mercearia, tomava seu uísque no mesmo lugar do balcão onde eu bebia minha Original. Lógico que não acreditei naquele papo, mas afirmou o balconista dizendo pra eu procurar entre as imagens de Cave no You Tube uma em que ele está na Mercearia. [infelizmente retiraram o vídeo do youtube]
http://www.youtube.com/watch?v=VAIGeETmk90

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

"Mirisola é legal"


Caramba, faz mais de três semanas que não apareço por aqui! São os compromissos depois de minhas nada prosaicas e inolvidáveis viagens a Paraty e ao Rio de Janeiro. Mas vâmo lá. Pra reiniciar as conversas quero falar de Marcelo Mirisola, o polêmico, o mito “MM”. Conheço, aos borbotões, muita gente que não curte o cara. Adjetivos até agressivos dirigidos ao escritor são comuns. Alguns amigos não entendem por que menciono sempre os textos de Mirisola, por que faço elogios à sua narrativa, à sua verve. É porque eu acho que resenhistas e críticos confundem a acidez dos textos de MM com o próprio. Eu já li e já ouvi dizer que toda essa aura de mal-humorado, de irritadiço com a própria sombra, é falsa impressão, uma invenção (talvez do próprio MM). Na verdade dizem que o cara é fino, educado, uma lady com amigos e admiradores. Mario Bortolotto diz que estamos diante de um grande escritor, dono de uma literatura violenta, mas que tem ternura e poesia de montão; “aquela cota de dor necessária para que não passemos por esta vida anestesiados”. Bom. Mas da intimidade do cara não posso garantir; não sou amigo do autor (infelizmente). O que posso assegurar é quanto à qualidade da obra de Mirisola, que me agrada cada vez mais. Como não faz muito tempo que descobri MM (acho que foi em 2005, num “Desconcertos” do meu amigo Claudinei Vieira na Casa das Rosas) estou ainda lendo parte do que ele escreveu. O impacto que a excelente narrativa de Mirisola causou em mim comparo com a que Marcelo Rubens Paiva, Reinaldo Moraes e Caio Fernando Abreu me proporcionaram nos anos 80. Então transcrevo aqui trechos do conto “Basta Um Verniz Para ser Feliz” do livro “Herói Devolvido”/2000 – editora 34 (que acabo de ler) pra vocês tirarem suas próprias impressões.

BASTA UM VERNIZ PARA SER FELIZ

O que eu gosto nele é a vida minúscula e bem-sucedida que leva. O medo de mostrar o rabo, sujar a gravata. Duarte jamais vai cagar em cima do bolo de aniversário. É do tipo que freqüenta sauna finlandesa às terças-feiras e reputa uma ‘personalidade vitoriosa’ por conta e obra da colônia importada que usa depois da barba: “gasto mil dólares por mês com a educação das crianças”, para ele a vida é barbear rente, hipócrita e macio, “outros tantos em pet-shop, treinador”; e tudo, desde o nome (ou marca, tanto faz) do “Colégio” das crianças até a conta do veterinário, absolutamente tudo, poderíamos incluir plano e saúde e câncer no cu, é uma sinopse deste sentimento comprado de vitória e frescura, depois da barba. Duarte é um babaca.
O melhor é que me empresta dinheiro. Fica todo pimpão quando lhe peço dinheiro – empresta, o babaca. O mérito é meu, tenho talento pressas coisas. A mulher dele é baixinha e tem as tetas grandes. Eu e ele parecemos irmãos (nossa bunda é grande). Qualquer dia chupo as tetas dela. O babaca confia em mim. Eles são rotarianos. Um dia chamei ela num canto e disse: “você gosta de mulher, não gosta?”. O problema é que ela não tem coragem de enfiar o dedo no cu dele: “enfia! Enfia que vai salvar seu casamento”. O casamento deles tá em crise. Eu vivo falando para ela enfiar o dedo no cu dele. Mas ela não tem coragem. Ela tem raiva da filha. E protege o veadinho do filho. Casou na capela de São José. O padre disse: “você, fulana de tal, baixinha das tetas grandes, promete (...) na alegria e na tristeza e etc, enfiar o dedo no cu dele quando for necessário...?” (...) Mas ela não tem coragem. Às vezes pelo dinheiro para ela e o babaca nem fica sabendo. Ainda chupo aqueles peitões. “Enfia! Enfia que vai salvar seu casamento!”. Ela tem uma loja de “conveniência” na Gabriel Monteiro, perto da Brunella. Ele é executivo da Ultrafértil (e pelo jeito, deve roubar). A loja é a cara deles.
Outro dia fomos ao karaoquê. Eu sou um cara simpático. Capaz de cantar “Feelings” inteirinha e desafinar no momento adequado somente para agradá-los. Não me envolvo em polêmicas, nem fudendo. Quando solicitado lanço mão do meu repertório ‘excêntrico e divertido’ e até sou um pouco efeminado sob este aspecto e, entre outras coisas, faço questão de ressaltar a importância do pensamento positivo, de sonegar impostos e de estar sempre com o corpinho malhado; minha falsa modéstia, em conluio, digamos assim, com a civilidade de direita, bom-mocismo, aversão disfarçada por nordestinos e demais babaquices para consumo da classe média alta (isso não tem explicação, mas eu faturo, e faturo em cima), tem o poder de aplacar a conscienciazinha pesada do casal Duarte e ainda por cima ensejar uma atmosfera “night and day” para boi dormir. Uso de má-fé e cores modernas. (...) Também tenho algumas frases de efeito em inglês e francês. Além de pronúncia e desconhecimento impecáveis em ambos os idiomas. Basta um verniz para ser feliz. (...) Sou o tipo do alcoviteiro, filho da puta, puxa-saco e ótima companhia. Um “entertainment”, como dizem por aí.
Geralmente depois do sushi o casal Duarte vai para casa tentar um foda. Ela pensando na Marilise. E ele á cinco, seis, ou no máximo sete bombadas, e goza. Aí vira para o lado do abajur, solta uns peidos e dorme. Ela tem vontade de assassiná-lo e sente nostalgia furiosa do grelo da Marilise. Mas os desejos de grelo e de assassiná-lo logo são acumulados durante dezoito anos dentro da alma. Sempre a mesma coisa. Os dois usam pijama de seda. Alma é um treco que fede.
Uso de cerimônia com Duarte. Faz a cabecinha dele. Eu não me arrisco. A coisa é calculada. Com ela já dá para falar umas baixarias. O brasão do pijama deles foi confeccionado sob minha orientação. Presente de quinze anos de casamento (...) Com ela, ou com ele. Ou com “o casal” que é uma invenção deles, sou falso de qualquer jeito. Eles gostam, e me emprestam dinheiro.
Eu com ele: - escuta, Duarte, -(pego no braço dele e desempenho o bookmaker ao pé-do-ouvido) – nós somos amigos faz um bom tempo. Você sabe que pode confiar em mim... não sabe? - claro, claro, quanto é que você precisa?
Eu com ela: - enfia que ele vai gostar! (...)
Os filhos deles, Thiago e Fernanda, me chamam de tio. Thiago tem dezessete, Fernandinha, quinze anos. O garoto é bicha e que fazer ESPM. A menina é uma biscate. Ele me chamam de “tio”, os cínicos. O uísque da casa deles é dos bons. A empregada é de confiança. Eu batizei o cachorro de Elton John. Eta familiazinha de merda. Eu me dou muitíssimo bem com todos eles. Eles me adoram. Eu os odeio.
-- Sabia que sua mãe não suporta você, Fernandinha?
Aí o arremedo de piranha chora. Se descabela, e eu lhe dou uns conselhos:
-- Mas eu falo com ela, vai se divertir que eu garanto.
-- Jura, tio?
Juro, é claro que eu juro. A mãe se queixa da filha. Eu digo para não se preocupar com a piranha:
-- Fernandinha é um anjo.
Puta que pariu! A mãe prefere o Thiaguinho! Duarte não quer nem saber. E faz muito bem. Quando mãe e filha brigam eu aproveito para pedir mais dinheiro. Quero que se fodam. Aí a mulher de Duarte descobriu a pólvora:
-- Ele tem um amante. Um homem!
-- Eu não disse pra “você enfiar do dedo no cu dele”?
-- E agora, meu Deus! E agora?
-- Pede dum Honda Civic pra ele. Ele adora você. E você adora o Duarte, não é assim?
Aí eu falei que a família dela era maravilhosa. Recomendei o grelo de Marilise e...
-- Não vai ser um macho que come a bunda de Duarte que vai mudar alguma coisa na vida de vocês... etc.
Dois beijinhos. Ela vai dar uma recauchutada nas tetas. Um veado que fazer ESPM. Outro veado provavelmente vai pagar a conta. Uma putinha desperdiçada na família. Um encoxada na empregada de confiança. Um pontapé no Elton John (é praxe). E, em suma, vou faturar uma grana preta com toda essa bandalha.
Ao fundo o pessoal do Buffet, barulho de louça, talheres. Hoje tem festa no apartamento dos Duarte. O endereço é Dr. Mario Ferraz, 56, ap.91, quase esquina com a Tucumã. Pertinho da Bell’s Beach. É fácil chegar lá. basta enfiar o dedo no cu de alguém. Ou enfiá-lo no próprio rabo, e não olhar para trás. Um pouco de vaselina. Outro tanto de verniz para ser feliz.

E pra quem quiser, o melhor portal de literatura Cronópio disponibilizou uma entrevista com Mirisola, realizado na loja da Fnac na Paulista (comigo na platéia). É só clicar aqui pra ver os vídeoshttp://www.tvcronopios.com.br/bitniks05/