quarta-feira, 18 de novembro de 2009

NO ESCURINHO DO APAGÃO

Tenho cá para mim que o apagão da semana passada até que foi legal. É verdade. Logo no começo do breu baixou uma velha vontade inspiradora de tocar violão. Digo “velha vontade” porque há algum tempo me pego pensando de quando eu andava com o violão pra todo canto, de quando eu vivia sem grana, sem lenço, sem documento e vomitando lirismo e aforismos libertários. Às vezes quero acreditar que dos 13 até os 25 anos, eu tinha um pouco dessa tal “alma de artista”. Eu era um daqueles malucos que, logo no começo do ano letivo, ia de classe em classe procurando gente pra montar alguma peça teatral ou pra organizar pequenos festivais musicais. De cara saquei que eu não tinha talento algum para atuar, no entanto me dava bem com produção e direção. No começo a gente fazia muita porcaria, do tipo “O Médico e o Monstro”, “Meu Pé de Laranja Lima” e “Marcelino Pão e Vinho”, mas, com o tempo, fomos aprendendo e tomando gosto pela arte. No colegial conhecemos textos mais interessantes e cênicos como o “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, que montamos mais de 5 vezes – sei de cor, até hoje, falas inteiras dos personagens “João Grilo” e “Chicó”. De legal mesmo foi quando montamos o “Auto da Barca do Inferno” do Gil Vicente; nós até esperávamos algum tipo de reação contrária, mas não imaginávamos que nossas apresentações seriam interrompidas (leia-se “censurada”) logo após as duas primeiras apresentações: isso porque pedimos à nossa amiga Carla - que interpretaria a amante do Frade - ficar com os peitinhos de fora numa das cenas (e ela topou, he he!).
“Como é bom poder tocar um instrumento”. Como disse, durante o apagão senti o mesmo barato de quando o violão era parte integrante das minhas andanças. É sério. Eu levava o meu violão até para a cama. Se alguém fosse me procurar durante os intervalos de aula ou no recreio era só seguir o som do violão que me encontraria. Naquela época, no início dos anos 80, meu repertório consistia de muito Caetano, Guilherme Arantes, Gil, Zé Ramalho, Fábio Jr (sim, esse cara já gravou muita coisa boa), Belchior, Elton John, Queen, Bob Marley, Beto Guedes, Djavan, e outros tantos. Eu não tocava bem (como até hoje), mas me dedicava nalgumas interpretações a ponto de convencer muita gente. E tinha também aquele papo de tocar violão pra conquistar as garotas que realmente funcionava; só que era necessário conhecer um pouco da menina e de seu gosto musical, daí partir pro xaveco e pro abraço.
E sob a luz de velas toquei antigas canções que eu guardava em velhas pastas que estavam desaparecidas na bagunça da estante. Numa delas encontrei um poema bem legal [este é o terceiro “legal” que uso - onde foram parar meus adjetivos mais elegantes?] que meus amigos Arthur Ribeiro e Luciano Cenci fizeram para mim e pra minha amiga Vivi, enquanto tomávamos algumas brejas e tocávamos violão, isso lá no começo dos anos 90. Naquela época líamos Neruda e os versos surgiram meio que plagiando involuntariamente o título do livro “Confesso que Vivi” do poeta chileno. O certo é que quando eu enchia o caneco teimava em trocar “Vivi” por “Lili”, e vejam o que eles compuseram:

“O Zé só me chama de Lili
Vivi que eu sou!
Pois Zé!
O que eu vou fazer?
Vi que eu sou
Pro Zé sempre Li...

Vivi que eu sou
Sou vivinha até
Sacumé
Eu sei que o Zé
Tem a língua livre
Podicrê
O que eu vou dizer
Se então parece que o Zé disse não:
Pra mim não pode ser assim
Eu pensei:
Não pra mim
Não pode ser assim
E, no entanto, existe algo entre nós
Que não vai ter fim
Quer dizer
Não sou eu
Sou e serei o que vivi.”

4 comentários:

marcos sotter disse...

Suas histórias são ótimas, Zeca. E bem contadas.
Abçs.

Silmara disse...

Durante o apagão eu fiquei corrigindo provas (um saco). ô vida! Nem no maior breu tenho sossego.
Beijos.

Rodrigo Torres disse...

Nossa, Zeca! Marcelino Pão e Vinho foi um filme que vi quando eu tinha 5 anos.
Quem me dera eu pudesse tocar um instrumento também.
Abraços.

Anônimo disse...

Eu olhei pras estrelas. Velho hábito galilaico que me acompanhou por toda infância, atravessou a universidade e foi embora quando voltei à selva de concreto. Tantas luzes, tão pouco escuro, não se vê mais os olhos de Catxré, nem o Boitatá, nem Mãe D'ouro que só andam no breu.

O céu cinzento sem estrelas é que nem túnel de concreto, de metrô, de esgoto. Sem violão, sem velas, a vida escorrega como merda, e a gente vai deixando o lirismo de lado (não que eu já tenha tido muito). Sobram só as dentaduras pra gente botar no copo.

Santo Apagão!

Que venham muitos e muitos pela frente!

Ioda