segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O MISSISSIPPI É AQUI

No começo dos anos 90 fui entrevistar um cara para o Jornal do Butantã numa rua estranhamente pobre do Rio Pequeno, perifa de Sampa. Ruas pobres por lá não são nada estranho devido às desigualdades que todos conhecem bem, mas naquela rua havia algo anormal, diferente; aquela rua possuía alma. Uma alma blueseira. Um Robert Johnson que atendia a todos, com fineza, por Ismael Costa. Dizem que Johnson fez pacto com o tinhoso, vendendo a alma para ser o virtuoso que foi (história que ele mesmo narra na canção “Me and The Devil Blues”), dizem que até os 16 anos trabalhou no campo, depois seguiu carreira musical, se metendo em bebedeiras, brigas e prisões. Dizem também que era dado a conquistar e a espancar as mulheres com quem se envolvia - há a lenda de que ele teria sido envenenado (e morto precocemente aos 27 anos) por algum marido ciumento.

Já o bluesman Ismael Costa, daquela rua estranha do RP, trabalhava honestamente há muito tempo no CAU (Centro Administrativo do Unibanco) na Rodovia Raposo Tavares, no Km 15 (onde meus três irmãos mais velhos que eu também trabalharam). Ismael construiu uma edícula num "barranco" onde morava com a esposa; aonde seus poucos e interessados alunos iam aprender sobre o ritmo que influenciou Jazz, Rock, Rhythm and blues, Soul music, e o Pop também. Orgulhoso, me contou como construiu seu inseparável violão Dobro metálico; como o fez e por onde andou para comprar cada componente. Apesar da infância paupérrima, me falou dos caras malucos (com grana) que conheceu nos anos 70, cujos pais traziam discos de Blues da Europa ou dos EUA, mexendo para sempre com o gosto musical de Ismael. Nesta entrevista descobri John Lee Hooker, Son House e Robert Johnson, pai, filho e espírito santo para o blues boy Ismael. Me falou do sonho de conhecer o Estado do Mississippi que o remeteria à origem Blues.

Em 1995 organizei alguns eventos musicais num pequeno restaurante do qual fui sócio, realizando uma noite dedica ao Blues; é lógico que Ismael Costa não poderia ficar de fora. Outros músicos também se apresentaram, mas a noite foi de Ismael. Todos de boca aberta aos primeiros toques daquele Dobro metálico, todos atentos à voz rouca de velho blueseiro de Chicago ou do Mississippi. Era como se Robert Johnson tivesse reencarnado naquele cara, lá naquele pequeno bar e restaurante do Rio Pequeno. O fim daquela noite terminou numa inesquecível jam session com todos os músicos no palco, com Ismael de destaque principal.

E no sábado passado, num boteco da esquina da Capote Valente com a Teodoro Sampaio, meu amigo Marcinho (guitarrista da honesta banda roqueira MandaChuva) me contou que Ismael Costa morreu há mais de quatro anos. Fiquei triste pra cacete. Assim como eu, muita gente achava que o lugar devido a Ismael seria o reconhecimento, um lugar entre os melhores músicos brasucas. Não rolou isso e nem a sua sonhada viagem ao "Delta" do Mississippi. Generoso, doou sua gaita diatônica pouco tempo antes de morrer ao outro membro da Mandachuva, ao meu amigo Rinaldo.

Diferentemente de Robert Johnson, Ismael não se envolvia em brigas, era calmo demais para isso. Não bebia mais que uma dose de conhaque durante qualquer apresentação. Acho que nunca espancou mulher alguma, mas morreu triste e solitário, como num solo de Blues, depois que a esposa o deixou. O baque foi doloroso. Dizem que Ismael degringolou depois da separação, parece que enfiou os dois pés na jaca: tem gente que diz que ele estava consumindo de tudo. Não sei por que, mas me consolei quando Marcinho asseverou depois de sorver outro doloroso gole de sua cerveja: “Zeca, eu não tiro a razão da esposa, e nem a de Ismael ao escolher o seu final.”

PS: num papo sobre o nosso bluesman (depois de escrever este texto), o meu amigo Old me soprou a estória de que Ismael fora integrante da “Santa Gang”, banda que abriu diversos shows da jurássica “Made in Brazil” lá nos anos 70.


(Na foto, O vellho bluesman Ismael e seu violão Dobro, acompanhado por Ailton Rios, na gaita)

Um comentário:

marcio cardoso disse...

Zeca em nome dos apreciadores da boa música e das grandes amizades,agradeço a lembrança do grande musico Ismael que por muitas vezes me deu aulas gratuitas sem nem perceber,porque a presença dele ja era uma aula,mas quando percebia tambem não fazia questão,pois ele tinha em sí a generosidade da música na alma e só quem tem tamanha sensibilidade é capaz de tão grande doação com o máximo de alegria e o mínimo de esforço.

Muito obrigado Ismael!

Obrigado Zeca. forte Abraço!

Marcio (mandachuva)